Maria Ronda, no recorte, vivia de se coçar. De uns tempos pra cá, só andava aceitando Radamuntonho, recém-chegado em sua trama, aquele que mudaria a sua vida. Mas, no recorte, tinha uma coceira tão forte nas suas partes, um humor gosmento que relava na face interna das suas coxas e aquilo tudo ali era comichão infinito; tal que quando Radamuntonho adentrou no barraco pra comparecer, ela ressuscitou os não-me-toques. Manhoso e tranquilo, começou a soprar-lhe estória nos ouvidos...
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Radamuntonho acusou nereidas nos mares nordestinos. Montou expedição, chamou timoneiros, marujos, cozinheiros, os que fazem biscates, fotógrafos, palhaços, geógrafos, violeiros, cartógrafos, mascates; chamou foi uma cidade inteira pro seu barco titânico! No porto, restou o prefeito, choroso, indo acenar boa viagem. E o Titã cromado deslizou duma praia da Bahia pra dentro, mais pra dentro do oceano. O itinerário era a fantasia do capitão: sereias no Atlântico, cangaço mítico do Nordeste numa ilha no meio do mar. Bancava todos, sua riqueza, a comida muita e também funções. Radamuntonho assim disse.
Nos primeiros meses, a empolgação, o deslumbre de prata -- vejam Penha, a mendiga da cidade, que agora brincava de madame! -- disfarçavam muito bem a idiotia de uma viagem daquelas.
Ora, isso aqui queu sinto é diferente dum enjôo, Leiteiro, começando uma reflexão, vem cá num tête-à-tête: deixamos nosso pedaço de chão, não é isso? E nossos deveres, não é assim? E pra que mesmo? Pra passear no mar? Buscar novo chão? Prover alimentos? Não! Viemos na lábia dum lunático, família, viemos atrás de sereias... E foi o primeiro dos mil Judas, que Radamuntonho comprara sem ansiar por esse defeito de ser Judas. Comprara mesmo idiotas, assim que disse, não que desconfiasse da existência de sereias, isso não.
Até Papa-figo, idiota de mar que só fedia e pestanejava, amorcegado no navio, molecagem de se esconder nos porões, galhofava com trejeitos cem das estórias de nereidas:
Mano Radamuntonho pirou, mano Afonso -- e um tremelique
Vejo a hora explodir-se em chilique -- se treme
Põe fantasia a serviço do leme? -- trinca dentes
Gostaria era dum capitão daqueles descentes!
E o estúpido, sabido que jamais conseguiria parear, em ritmo, palavras e tiques, se guarda no porão e suas mazelas, comendo nacos de queijo azedo. Radamuntonho assim disse. A propósito, Afonso era um barril de carvalho, marujo de madeira para estoque.
Esse burburinho chato de apatia contra o provedor da viagem, desgraçou-se quando ninguém queria mais exercer suas respectivas funções. Então que os marujos embriagavam-se nos vários caralhos e faziam competições de cuspe à distância, lá de cima; os que faziam biscates, não contentes com as correntes miudezas que eram suas especialidades (tal como Radamuntonho, que os designou pra limpar a cusparada dos marujos), queriam logo coisas grandiosas como desenhar mapas, conjecturar sobre a posição do navio ou mesmo guiá-lo; e aí era a tríade dos piadistas, geógrafos, timoneiros, cartógrafos, novos reis da zombaria; assim, amolgaram-se os palhaços e os violeiros, artistas assaltados de espaço -- a tríade pagava pela atenção e pelos risos, artistas não tinham dinheiro -- que repousaram fácil na cozinha e nos porões e saíram pançudos e acabaram as comidas; os cozinheiros arranjaram outro fazer, mas, pra ser fiel ao exemplo de Radamuntonho, assim disse que por aí foi.
Em meio ao caos duma lataria desgovernada, e Radamuntonho que muito dormia e quando aparecia era o mais austero e mais cheio de certezas (era isso que incomodava os incrédulos), todos os Judas, em concílio, decidiram voltar para sua terra: acabara a comida, sujeira e doenças rasgavam o navio. Mas, idiotas: Radamuntonho que disse. Ele nada podia fazer, os mulos estavam em maior número e começaram a voltar para o continente. Nada abalou a acusação do idealizador da viagem, que apontara uma nereida fugida ligeira de perto da costa quando ainda era menino e não tinha poder. Iria achá-la, disse.
Foi que num dos dias de regresso, quando restava pouca água para a terra, caiu uma daquelas tempestades laboriosas que põem os joelhos dos incrédulos no casco do navio. E o Titã embolou muito macio na água, enquanto todos caiam e afogavam no desespero. Radamuntonho, exímio nadador que disse, um que só faltavam guelras, deixou pra trás o navio emborcado e a gritaria, com braçadas tranquilas ao noroeste.
Depois de vários dias nadando que disse, veio a achar um chão de areia, ilhota pequenina de corais bem vermelhos. Numa pedra escarlate, que disse ser rubi puro, uma nereida figurava no desembaraço dos cabelos, a cauda marinha repousada meio mar, meio luz. Disse que apontou-lhe o dedo como que descobrindo-a e ela o chamou pro seu colo de escamas. Feliz que disse, foi ao seu encontro, e a sereia começou a contar suas memórias durante vários anos. Daí o conhecimento épico de Radamuntonho, que disse. A última lembrança foi quando a nereida cantou "Zefinha", cantarola filada e aprendida com o menino Radamuntonho de uns anos atrás, na costa da Bahia, que disse. Foi quando ele finalmente conseguiu adormecer, depois de vários anos ali, tendo os cabelos alisados pela sereia; acordou na margem de outrora, encharcadíssimo e sonhador, com memórias milenares, que disse.
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Rondinha, pensadora, tinha os olhos nas calhas e um riso bobo. O gentleman erudito apalpa enquanto fala que disse; maquina outras estórias. Rondinha relaxa e esquece os pruridos.
Com os olhos cheios
Seios na rua
Acaba seu dia encantada;
Feliz com su'alma
Labuta se/a despindo
Apaixonada.
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