"Existem pessoas que nascem más?"
P. Ramalho era menino de seis anos. Brincava e saíra do quarto para um lanche. Era moleque de boa vida, nada tinha do que reclamar. Pais bem sucedidos, sempre presentes, uma irmã mais velha cuidadosa e todas as paparicações saudáveis da sua avó materna, que morava com a família na grande casa colonial. Tudo permitia aos observadores e parentes tê-lo como um bom garoto e próspero homem de grandes valores. No seu pouco tempo de vida era assim que tudo parecia. Saiu do quarto com um de seus brinquedos na mão: um dinossauro talhado em madeira. Saiu mordiscando o seu polegar, o único vício daquele anjo. A casa era enorme, arquitetada para nobres, valiosa como pode ser uma casa, pintada em branco por escravos pretos havia bom tempo. Quando lhe ocorreu que teria que descer para comer biscoitos com o seu leite natural, porque não comera nada no almoço, talvez voltasse correndo para o seu quarto esperando que escurecesse e seu pai chegasse, lhe pusesse no colo e descesse feliz os vários degraus contando piadas repetidas. Mas não voltou, pois viu a sua avó que iniciara a descida dificultosa para o cômodo inferior. Era bem velha a senhora; velha e encurvada, embora a sua bondade e vontade crescessem contra o caminho natural sob o qual andamos em direção a morte. Suas mãos já não eram as mesmas como no tempo dos negros escravos. Velha e duma bondade infinita e encurvada e descia as escadas. Ramalhinho, desistindo de sua preguiça, caminhou para trás da mulher. E cuidou para que não notasse nem um barulho. Sem saber, foi ajudado pela velha quase surda. Segurando no corrimão, sua avó ia no terceiro degrau. Ele, abrindo um sorriso que não era nem um sorriso de alegria ou de menino travesso, esperou que ela levantasse um de seus pés e fez com que rolasse até o hall. Também jogou o seu dinossauro de madeira escada abaixo com a mesma expressão. "Vai!". Não era menino quem falava. Era a sua própria essência; esta nunca foi menina porque sempre existiu. Voltou para o quarto e foi brincar com seus outros brinquedos.
"Não. Não existem."
Ramalho tomou um último gole da bebida e logo saiu do bar deixando seu interlocutor confuso por detrás do balcão. Voltou para casa, onde mora sozinho. Seus parentes foram todos mortos em mortes singulares e ditas casuais. Aos 34 anos Ramalho achou de ficar arrependido de tudo e reprimiu o seu mal. Para todos os efeitos, em sua cabeça não existia. Muitas vezes voltava à vida por breves momentos, quando batia em um gato moribundo ou queimava alguns vira-latas da vizinhança.
Não há psicologia que explique, nenhuma ciência. A essência é como uma Deusa, sempre existiu. E sou grato, pois dela herdei equilíbrio entre o bom e o ruim.
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