Tenho que considerar algo antes de narrar próxima história. A música é tão necessária como as palavras e narra com melodia os sentimentos humanos. É uma das expressões indispensáveis. E existem os tipos de música. Quando escuto 'tal', o efeito é hipnotizante, faz querer deixar o chão. Se escuto 'tanta', o efeito é outro, mas considerável, pois faz querer voltar tempos. Os instrumentos também são dotados cada um, quando exercitados, de vozes cifradas. Não importam as notas, ou quem os toque pois todo o barulho que lhes deixa é música. É música quando uma criança sopra uma flauta, bate nas cordas dum violão. Que seja ruim, porém música. E é sobre a peculiaridade de certo instrumento a narrativa. Não queira saber de onde provém a história, nem se é verídica... Mas eu vi aquele homem e não foi nada comum ver seu rosto fundo, sem expressão, diferente de tudo e falando coisas que não se falam. Um horror! Chamava-se Gabriel. Nascera enfim numa família normal, mas isso não importa, nem sua infância. Quando atingiu a idade adulta atirou-se de cabeça sem nenhum incentivo no mundo musical e era um medíocre intérprete de piano, tocava algo de gaita. Apresentou-se muitas vezes em bares aqui mesmo na rua onde moro. Nunca interessei-me de vê-lo, muita gente também não e isso não foi empecilho para que tocasse alegre as suas melodias fracas, escritas em casa. Depois de um tempo sumiu, pois recolhera-se ao seu quarto, com o intuito de estudar música e tocar sem parar o piano. Chegou um dia incomum em pleno verão, pois fez-se muito frio neste nosso bairro; alguns disseram ver até granizo em seus jardins. Gabriel ainda encontrava-se no quarto e ouviu um som que vinha de fora da casa. Era um acorde dum baixo e aquilo reverberou na sua cabeça como fosse um sino e ele quebrou a gaita que estava nas mãos, vítima duma intensa dor. Recuperado, saiu depressa pela porta da frente e deparou-se com o instrumento deixado no tapete. Buscou na rua deserta alguém que ali o abandonara, jurou ver uma pessoa no final direito mas deste mesmo lado veio um vento muito gelado. Pegou o baixo e entrou na casa. Parecia comum, era negro, cordas absolutamente normais, porém não tocou naquele dia lembrando-se da dor cruciante em sua cabeça. Deixou-o encostado no móvel da sala, foi tentar consertar sua gaita. Não conseguiu e foi dormir. No outro dia acordou bem mais cedo que de costume para um 'vagabundo metido a artista', como dizia seu pai. Atraído por algo na sala. Pelo instrumento abandonado. A forma como o raio de sol refletia-se nele, aquelas cordas comuns tão necessitadas de toque. Nem lembrou-se da dor, o instrumento o fez sentar na cadeira e pegá-lo; de alguma forma mandava no músico. Excitado sem saber porque, mencionou tocar o primeiro acorde e quando o fez perdeu-se para sempre. Tocou e tocou naquele dia. Sem parar suou sem descanso a liberar aqueles sons não mais doloridos. E agora eu que digo que o baixo é liberador de som tão perverso, o instrumento mais perverso e aquele era o pior deles. Melodias embargadas de dor foram tocadas e cantadas com vozes de línguas mortas. Com o cair da noite, o clima novamente tornou-se frio mas não naquela casa. Quanto mais tocava mais seus olhos esbugalhavam-se, mudavam de cor constantemente no que parecia ser o intermédio de sua música. Aquilo entrou pela madrugada, seus dedos não conseguiam deixar as cordas em paz, sua voz tornou-se como a voz de muitos maldosos juntos. A partir daquele momento para cada nota que tocava uma figura lambida por fogo deixava o instrumento e juntava-se no coro de vozes. E o clima foi aquecendo até que a música estava sendo cantada por labaredas e o crepitar dos móveis e instrumentos formava a batida. Tudo queimava mas ele continuou a cantar. Nesta hora já amanhecia e encontrava-se numa redoma invisível, livre do fogo, onde ainda tocava. Até que descuidou-se do instrumento e deixou que caísse no fogo. Foi quando deu um grito tão horrível que matou vários animais da vizinhança, estilhaçou vidraças próximas e fez com que saísse pelo seu peito uma figura lambida por fogo. Esta caiu diretamente sobre o baixo que já ia queimando nos seus pés e acabou por finalizá-lo em estilhaços. Já chegavam os bombeiros e cuidaram de apagar o fogo. Nesta hora eu lá estava como muitos de meus vizinhos. E vi como retiraram aquela criatura enrolada em panos. Intacta. Porém mudada. Não era mais humano, pois era oco de música e sua alma o havia abandonado. Louco, gritou muitas línguas grotescas para todos como fosse um animal... Engraçado. Não mais esconderei isso de você, leitor, porque este escrito deixo jogado em qualquer local por onde passo. Esperei que todos saíssem do local, entrei nas ruínas e procurei as cordas intactas. Forjei um novo baixo e tomarei outra alma, pois fora eu que deixara aquele instrumento na porta do infeliz. Mas vocês nunca irão me pegar, pois acreditar na minha história é como acreditar em outras tantas besteiras. Sigo elaborando meus instrumentos e contando e levando almas para o meu tão temido e odiado Pai.
ao gênero!
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