terça-feira, 23 de dezembro de 2008

CONTO

Era belo e contrário. Afetado. Era tanto que nem gostava de permanecer em espaços com muita gente, de braços agitados ou passos muitos. Evitava comemorações, andava na sombra, evitava torneios, assistia de longe, evitava falar mas gostava de ver e andar. E suas andanças eram tantas, com diversos destinos de relva, de montanha, de água, de campos de areia, de lendas, de aventuras, que já perdera a medida das milhas pisadas... Um afetado belo contrário aventureiro, que limitava a sua labuta nas pontas de suas botinas pesadas. Foi tal que numa dessas andanças, saído de um condado aconchegante, caindo na incerteza que eram as estradas em dada época, seguia tranqüilo com a Lua na sua alegria reluzente de quando cheia e murmurando uma velha cantiga falada rouca sobre os encantos daquele astro. Ela fazia bem seu papel, iluminando, ele agradecia como fora ensinado. Levava da última estadia só saudade de gente com as quais nem falara, que só havia observado e caído nos encantos mil daquele povo humilde. Eram suas aventuras. É morbidez, é monotonia, pensariam alguns. Mas, refletindo no seu caminhar, chutando pedrinhas sob a luz, descobriu que as suas aventuras imaginadas de amores, princesas de vestidos curtos e sujos, heróis com cutelos melados de banha de porco, dragões embriagados e barbudos, ogros valentões e bem penteados, bruxas palpiteiras e observadoras, eram sim as grandes, maiores aventuras. Eram imensas; incabíveis e infindáveis. Nunca tocara uma espada, uma coroa, embora fosse sua alma tão viajada como a de qualquer outro aventureiro. Fazia de simples fatos uma tempestade cheia de magia, fantasias das grandes e o resultado era sempre distinto,inesperado; dessa tempestade saiam as vítimas e as construções e as suas ocorrências mais ricas, muito melhores, sem perder as essências respectivas, de fato.

Não entendes? Vem, entremos nesta noite de luz nas redondezas e na mente deste peculiar aventureiro. Primeiro te darei a nossa versão; narrarei o que nós conseguiríamos ver diante da seguinte situação. Depois, a visão do andarilho. Repara no contraste de nossas óticas... Bem, sem mais delongas:
Caminhou mais do que devia, ainda caminhava. Aproveitava a Lua, a noite e não parava ou sentia dores ou mostrava cansaço ou vontade de parar. Andava. Há algum tempo já devia ter parado e adormecido na beirada da estrada, continuar no outro dia pela manhã. Mas a Lua... Bem, você já sabe da Lua. Nestes alguns quilômetros que acrescentou em seu caminhar, deparou-se com um casebre que ficava bem próximo da estrada. Notou um menino chorando na frente da casinha, sentado numa escadinha de madeira carcomida. O viajante escondeu-se por trás dum arbusto denso, brechando por entre as folhas o garoto. Como foi dito, e espero que me tenham compreendido, nosso aventureiro não era de meter o bedelho diretamente no que ocorria; não gostava de dar as caras, era isso. Ora, uma criança chorando à meia noite no pé duma estrada; fraca iluminação vinha da casa, de uma vela provavelmente. Era uma vela mesmo, pela intensidade da luz. Chorava com a face voltada pra baixo, apoiando seus cotovelos nos joelhos desse jeito que menino faz. Suas lágrimas eram densas. Caiam na madeira fazendo estalos surdos que competiam com os soluços baixos. Depois de algum tempo sai uma menina da casa, uma loira, de vestido surrado, esquelética. Ela pede que o menino saia dali, ela queria passar. Disse que queria comida, iria buscar. Mas o menino não se mexeu não. Ela lhe acertou a nuca com as mãozinhas fechadas, era menor, mais frágil. Foi uma palmada desprezível pra ele. Levantou-se, olhou firme nos olhos fundos de quem devia ser a sua irmã, secou as lágrimas e disse que ninguém iria sair dali, e disse que papai e mamãe iriam ainda voltar, e disse que esperaria outros cinco dias, e disse que nunca desobedeceria ordens de seus pais. 'Entra!'. Entrou, chorando. O menino lá continuou, de cabeça baixa. Nosso aventureiro saiu de onde se escondia e continuou na estrada andando seu caminho. Deu uma última olhada no menino que o notou e ficou em alerta enquanto ele passava. Seguiu e nunca mais viu aquele pequeno em sua existência. Ora, deves estar maldizendo a ti mesmo por inventar de escutar esta história que conto, que nada tem de aventura ou graça. Acalma. Ouve agora o que se passou, sob outro olho, este tão especifico olho...

Por detrás daquelas folhas, havia um guarda muito forte, de armadura dura e pálida como marfim, espadas negras gigantes empunhadas que pareciam fundidas com as suas próprias mãos; tinha uma aparência de ar austero com a sua barba mal-feita, porém nobre. Digno de beleza, repleto de responsabilidades. Guardava aquele castelo imenso de pedra, bloqueando o único acesso com a sua imensidão. Na janela que dava para a frente do castelo, uma velha branca qual papel, magra quase a ponto de desaparecer. Seus dedos longos ossudos apontavam sempre para a frente, para a floresta negra que abria-se absoluta nas imediações da construção. Soluçava alto, gritava também, rouca como tinha de ser uma velha senhora. Então de súbito o guarda cansado e determinado olhou vagarosamente um olhar reprimente por cima dos ombros largos diretamente nos olhos daquela mulher. Ela não calou, mas seus dedos pararam de apontar para a floresta. Eis que surge o nosso aventureiro. Assim mesmo de onde estava, por detrás de uma planta. Imediato e alegre. Agora ele era um palhaço pintado, nariz vermelho e um daqueles chapéus de bobos da corte. Carregava um embrulho tão pesado nas costas que o seu caminhar era estranho e cômico. Um palhaço. Apareceu bem na frente do guarda sorrindo irônico. Nem pediu para entrar, foi caminhando em direção ao castelo. Apreensivo, o guarda logo ajeitou suas mãos cortantes negras estranhando a aura tranquila do palhaço intruso mesmo sob a visão um tanto pavorosa daquelas lâminas enormes. Quando chegou muito próximo, foi a hora que o guarda na sua posição teve que defender o que tinha de defender e desferiu dois golpes com as suas duas armas. Agilidade pelo que se viu era o forte do palhaço risonho pois quando vieram aquelas espadas desviou qual vento faz por entre brechas. Fora muito rápido! E o fracassado vigilante agora tinha seus braços presos a terra onde fixara as suas laminas. Tentava desesperadamente soltar-se do chão pedregoso. Nosso aventureiro palhaço sabia que não conseguiria livrar-se nem tão cedo e partiu para o castelo rindo para a senhora chorosa daquela janela da qual falei. Quando próximo o bastante, percebeu que a porta que daria para o interior do castelo estava lacrada por uma força conhecida mas impenetrável. Nada que o abalasse. Colocou o embrulho no chão, ao pé da janela alta onde estava a mulher. 'Minha princesa de marfim e mofo, escuta. Qual máscara que foi colocada em ti? De que feiúra? Eu, o palhaço, trouxe o tudo e o necessário, e nem escutar agora tu precisa pois lançarei este embrulho vital e gordo em tua janela. Pega, e eu me vou'. Além de ágil o homem era também forte pois como se lançando um prato de vidro, jogou o embrulho por cima da janela. A tristonha mulher ainda não vira nem ouvira nada, apenas chorava com os olhos na floresta. Com uma reverência longa, quase até o chão, nosso aventureiro deu as costas e seguiu no caminho da floresta. Quando passou pelo agoniado guarda, que ainda tentava libertar-se do solo, com apenas um toque, libertou-o daquela agonia e ele pode novamente empunhar suas mãos de lâmina negra, apenas assistindo aquele bobo que o desafiara e agora partia para a floresta. Quando ia lá longe, a senhora despertou do transe e avistou o embrulho. Rapidamente o abriu. Quantas maravilhas em forma de uma luz dourada saíram daquele pacote! E aquela senhora tão esquelética e curvada transformou-se em uma magnífica donzela loira de olhos brilhantes e um sorriso no rosto. O guarda também afetado pela claridade daquele embrulho cresceu em tamanho de onde estava e seus músculos pareceram duplicar. Os dois ainda continuavam olhando para a floresta, mas agora estavam revitalizados e mais fortes. Tudo por causa daquele palhaço que avistara aquilo tudo em pensamento. Um palhaço que na verdade era um andarilho aventureiro, um guarda que na verdade era um menino determinado, uma donzela que na verdade era uma menina faminta e um embrulho mágico que na verdade era uma bolsa repleta de comida de um certo condado deixada furtivamente na janela daquele casebre que com certeza duraria outros cinco dias, matando a fome de qualquer criança deste nosso mundo. É, companheiros, assim trabalhava e trabalha sem parar o maior de todos os aventureiros, que seguiu e ainda segue pelas estradas terrenas, vivendo todas as aventuras apresentadas na sua própria máquina pensante, embelezando nosso imaginário e construindo outras belas estórias!

Um comentário:

Anônimo disse...

Impressionou-me, caiu num tema que muitos não ousam tocar: introspecção e a capaciadade humana de olhar pra si próprio e contruir um mundo dentro de si. Muito bom.