domingo, 27 de novembro de 2011

MARIA RONDA, NONA

Radamuntonho vai entrando, velho larápio hoje, os olhos quase fora de órbita. Rondinha acode; né que o fidalgo tem estórias a contar por agora, inda assim. Vai balbuciando solto no sofá, acariciado outra vez pela fiel bactéria...

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Eram dois incômodos pra que começasse aquela que era a primeira de muitas explanações sobre as mais fantásticas teorias saídas do intelecto invejável de Radamuntonho, a ser ministrada sob olhares e anotações de mentes brilhantes e nem tanto ao seu nível, que disse. O primeiro é físico; por acaso, no dia anterior desatara a coçar a parte interna de suas pernas, como se não contentes peludas e rentes. Lá pra frente pediu um púlpito; assim, discretamente, se aliviaria com uma das mãos durante o discurso, ocultado pelo aparato de madeira, que disse. E aí era confiar na discrição de mestre e nos malungos doutores das primeiras poltronas.

O segundo incômodo figurava numa anomalia na platéia. Ora, um preto retinto ali, logo ali na terceira fileira, que disse, e não por ser preto, não, era por cochilar na mais notável das conferências já proferidas, que disse. Dormia pesado e Radamuntonho só enxergava o encrespado da sua cabeça por sobre o peito. Se pudera... Nosso orador falava da catalogação de monstruosidades intergaláticas, gritava e lançava o dedo em todo o canto, garantindo que poderia aninhar o calor do Sol num cesto ao seu bel-prazer; só com um olhar todos creriam na sua fórmula portentosa de dar vida no barro, enquanto geria outros universos inteiros, e haja a coçar a virilha comida de bichos, se não disse.

Como se dobrar apático, qual aquele preto sonolento, ante tal discurso? Ali era uma semente do mal, que disse, ali só barro e veneno, dali só lamentar. Os aplausos se multiplicariam muitas vezes e tanto fazia, mas o preto que lhe prestasse atenção, entre-pernas na carne viva, se não disse. Veio que num joguete com o destino da paz intergalática e as propriedades do núcleo da Terra, não sabido se pelo tema ou pela insistência dos olhos agoniados de Radamuntonho, que queria o preto agora como único ouvinte, levantou a cabeça, abriu os olhos e fitou o orador.

Radamuntonho sangrava e sentia as unhas úmidas quando coçando entre as pernas, se não disse, mas esse incômodo relevou-se logo, diante de um segundo. Ficasse dormindo o preto, que disse, ficasse dormindo. Acordara e pra quê. Era ali o Diabo, o Diabo cristão, o Diabo intergalático, o Diabo que criariam de todo barro do mundo. Seus olhos, o de pior, miradouro das mediocridades humanas, picos do mal em vexar e pôr a tremer Radamuntonho, que, estranho, não disse.

O Diabo nunca que terminava seu olhar de reprovação apenas em reprovar. Insistia com a bila preta, aquela esfera exibida... porquanto Radamuntonho só a tinha para si. E se algo tem significado é aquela brecha. De começo, reprova; descortina ideologias, discursos, ciladas enganadoras, e põe idiota o observado, que termina de balbuciar aquelas que eram suas convicções já sem nexo ou paixão. Vê que não faz uma inversão: nunca reprova um barbudinho a ponto de fazê-lo escravo conformado, não é isso. Trata de uma sacudidela que despe de razão qualquer tonho e lhe paralisa a espinha. E aqui, excrucia o tonho, inventa uma estória vexosa, um trajeto de vida total de verminose e prostração. Cairia ali de joelhos, Radamuntonho, nu, com os bagos pedrados e os bichos comendo sua virilha, só em saber-se frechado pelo Diabo.

Mas não era vez de titubear, que disse, não ali em frente aos doutos mundievais!

Radamuntonho nunca sairá derrotado, que disse. Compenetrou-se, ajuntou sua moral caqueada, de lado a coceira, deu de dedo indicador nor ar, gritando a infimidade do ser humano e dizendo-se conhecedor de ditames e fórmulas messiânicas. Lá o Diabo, se visse, com o mesmo deboche d'olhar bilado e negro, vitorioso, se visse...

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Maria Ronda permite que o amante durma no seu colo, o lodo nas calhas, acariciando seus cabelos grisalhos de saber, que disse. Suspira. Hoje lhe faltou desfecho pra estória, essa q'é seu substrato pra que supere o lodo em poesia. Ah, o penar nos poleiros doutrora em nada se compara com tal prelúdio sutil, prelúdio dum amor ideal, abre alas do amor vulgar, amor de carne branca esparramada e greta rubra! Mas hoje durmira Radamuntonho, antes de tudo; não tinha certeza na fala como dantes, parecia angustiado, qualquer teria pena de sua loucura. Rondinha não. Será que dalguma forma Radamuntonho poderia sofrer? Antes, será se ele conhece qualquer sofrimento? Duvida que sim, o lodo nas calhas. Calada e bem calada, embala seu amante, o melhor ser-humano da face da Terra, que disse.

Com olhos na calha
E dedos no enleio
Acaba seu dia angustiada;
De não ter em poesia
Resposta pro lodo,
Envergonhada.

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