segunda-feira, 27 de junho de 2011

ANTROPOLOGIA: CAOLHINHOS SAVANEIROS

Os caolhinhos savaneiros, definitivamente, o são por opção. Põem as mãozinhas defronte o olhinho esquerdo e abrem brechas propositais entre dedinhos, até porque as feras cultuam costume de rastrear descuidos de caolhinhos e vez por outra os garantem de banquete, por correr a ligeireza de cem pezinhos savaneiros e agigantar as garras no naipe do pescocinho dum pretinho daqueles. E assim eles dormem, vivem, acordam de palminha nas brechinhas, como fosse de estar ali organicamente. Dispõem-se nas savanas, bem rente aos arbustos, em círculos de cabaninhas.

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Armas

As pesquisas comprovam que a arminha dos caolhinhos é a sua covardia. Aplicando o teorema de Laplatine (do seu modo puro, de antropologia aplicada, datada de 1856, vide anexo), induzimos, pela observação de suas técnicas bélicas apáticas e defensivas, que abusam de certo encordoado feito com sisal e lascas de goiamum, o qual batizamos despretensiosamente de "dá-e-corre". Os embates anotados e computados, vistos sobre o método quali-quantitativo de Broom, denunciam seu armamento. A saber, tivemos a amostragem de duas ocorrências (embates não são comuns entre os caolhinhos), uma vitória e uma derrota, sendo o derrotado da primeira um pequeno lagarto que incomodava muito subindo nos tecidinhos das cabaninhas e o vencedor da segunda uma portentosa sucuri, que levou a melhor.

O confronto inicial, substrato de nossos achados e alívio para a ciência, pois que foi desse que pudemos concluir algo, foi típico: todos os caolhinhos estavam acuados no centro da aldeia, olhando entre as brechinhas dos dedinhos um pequenino sáurio que atacava uma cabaninha, por querer subir nela. O menos covarde, talvez chefinho da tribo, armado do referido encordoado, sem ainda usá-lo, começou a gritar timidamente como que para espantar o animal. Sem sucesso, muito sem gosto, e só com seu olhinho brechado disponível, começou a chacoalhar o instrumento contra a terra, como que para imitar uma cobra. Sem sucesso, começou a se autoflagelar com a arma, talvez fazendo alguma reza para espantar o réptil. Pelo sistema sintético-abrasivo de Marvin Harris, suprimimos o relato dos fatos que se sucederam e relatamos o desfecho: quando já muito tarde, o lagarto percebeu um besouro e o foi seguindo para longe. "Tiro e queda", falou nosso fotógrafo. Quisemos nomear a covardia dos caolhinhos como "Tiro e queda", já que havíamos suposto isso anteriormente, mas avaliamos que era uma denominação, nas palavras de nosso botânico, "assaz vulgar para um feito científico", e a chamamos de "CBAP", costume bélico apático-pragmático, com todos os créditos da rima para o nosso camareiro.

De importância lembrar que o segundo embate se deu, como diria Malinowski em seu "África Zebrada", na coxia das savanas. Aconteceu que um dos caolhinhos foi designado para apurar um pouco de água num lamaçal para o festejo que fariam por ter conseguido expulsar o lagarto. Já tarde da noite, não foi bem um embate, só a deglutição da sucuri mesmo. Não tivemos a chance de anotar ou computar nada, zero ciência.

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Subsistência

Os estudos nos confirmam que a sua comidinha é o resto de qualquer outra. O sistema societário de coleta e caça é uma exceção ao sistema lekeyano de provimento, fato não raro nas tribos savaneiras. Aduzimos, por analogia, à prática dos abutres; agem como microcoletores de migalhas, comem daqui e dali. Computamos que quando os macacos deixam uma área, e eles se certificam depois de muitas horas que não existem seres vivos maiores que os microscópicos, tomam o ambiente, coletando os frutos mordidos ou podres. Encontramo-nos atônitos ao constatar que o princípio da predileção de Bastian não se constatou no espaço amostral. É a regra conhecida do "o que vier é lucro"; uma vulgaridade também à nossa comunidade, mas que precisa ser reconhecida e que deixamos passar assim mesmo com essa nomenclatura.

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População

Apontamentos levam a crer que a população conta com vinte individuozinhos e tem de ser assim. Comparando com os estudos de Barkley, nossos pequenininhos, ou por displicência, ou por preguiça, não suportam em seu nichinho uma população de porte maior. Os caolhinhos bebês nascem muito fraquinhos e os mais velhinhos não ficam tão velhinhos assim. Nosso fotógrafo pegou uma cena sensacional de um partinho numa cabaninha, vide anexo.

Ciclo de vida

Pelo que se percebe, seu ciclinho de vida quanto mais curto mais adaptável à aldeia. Ainda noticiamos um caolhinho um pouco mais velhinho, e iniciamos a abordagem centrada de Strauss com aquele individuozinho; entretanto, não obtivemos sucesso, pois ainda na fase do "quem-sou-eu induzido", o caolhinho savaneiro caiu duro. Tanta a desconsolação de nosso psiquiatra, que já havia decidido desertar da nossa expedição, mas, sem comos e quandos, acabou por se interessar no estudo do nosso psicólogo que acompanhava uma caolhinha savaneira que mordia sem parar o seu único bracinho livre.

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Transportes

Fontes fidedignas nos relataram que só usam de transporte seus pezinhos. Não computamos nada de meios de locomoção diferentes da corrida acovardada ou do rolar dos corpos barranco abaixo. Nosso fotógrafo pegou um caolhinho tapando a carinha com as duas mãozinhas, realmente sem nada ver, enquanto escorregava num trecho de lama; todos concordaram que fora uma bela cena e todos riram enquanto bebiam.

Indumentária

Tudo indica que não usam nenhum tipo de indumentariazinha. Nossa estilista ficou hor-ro-ri-za-da, foi o que nos pareceu à primeira vista, quando chegamos com a expedição. Os peitos das caolhinhas vêm muito perto de seus umbiguinhos e os homens deixam tudo balançando. "Sambinha do crioulinho nuzinho", falou nosso camareiro, e todos riram e beberam. O que diria Hanna Wright em sua "Antropologia da Moda", meu Jesus?

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Organização Social

Ouvimos falar que a organização social é pá pum. "Passarinho que bica a pedra sabe o bico que tem", ou "o que se faz de noite, de dia aparece": daí um caolhinho, quando todos concordaram e gargalharam.

Religião

Chutamos que creem numa deusinha chué. Têm de ser uma caolhinha endeusadinha magrinha variolentinha com um encordoado "dá-e-corre" mágico que vive de pôr desgracinhas nas vidinhas dos caolhinhos, segundo a interpretação de nosso animado teólogo, da qual todos concordamos e brindamos.

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Xamanismo

Achamos que eles tratam dos doentinhos com chás das ervas que estiverem mais perto. É o apanhado mais lógico para esse povo, o que estiver à mão, teorema ou sistema ou conclusão feita por todos e com o aval do nosso botânico que na hora do veredito ou resultado ou metodologia estava de boca na grama, de boca na grama, quando ainda ríamos e bebíamos.

Cerimônias fúnebres

Se nós fôssemos caolhinhos savaneiros, preferiríamos enterrar nossos mortinhos em caixinhas adornadas com flores do campo num ritual singelo, franco, bem relax, que não suportamos chororô. Numa discussão acalorada, nosso biólogo objetou que seria muito melhor para o nosso povo guardar os mortos em caixotes, tendo em vista nossa higiene e consequentemente a nossa expectativa de vida. Nosso médico foi mais além e disse que para o nosso bem precisaríamos de modernas técnicas medicinais e de equipamento, só para começar, o que nos ensejou aplaudir nosso químico e nosso físico por conhecerem tais técnicas. Quando parecia morta a discussão, nossa estilista falou de roupas contra as intempéries, nosso político de organização, administração e deu uma piscadela e cochichou apenas para o nosso proprietário - "dominação" -, nossos sacerdotes de deuses mais condizentes com a nossa glória, nossos artistas de criações magníficas e cada vomitou conjecturas. Contudo, a bebida findou e no outro dia acordaríamos cedo para presenciar pela primeira vez um cerimonial fúnebre de um caolhinho savaneiro.

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Os caolhinhos savaneiros, definitivamente, o são por opção.

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