quinta-feira, 2 de julho de 2009

RONDA DE ABUTRE

Admirável ave, a gigante, negra
A qual dirijo olhar de respeito e satisfação
Aquela que não possui a tristeza odiosa do corvo
Ou a melosa felicidade daqueles que assobiam
Mas a sorte de ser o derradeiro caçador.

Oferece, pois, teu dorso, Abutre
Não me incomoda teu odor cadavérico
Nem tuas plumas pegajosas
Aproveito tua ronda íntegra e sincera
E sei que seus globos quase vermelhos entendem meu desejo de morar no teu ninho de palha, desejo de adormecer na tua ausência, na maciez do vegetal arquitetado
Acordar apenas na hora da caçada,
Da montaria alada ser o montador como preveêm vários sonhos inquietos que deixam o plano real para habitar o mundo fantasioso dos sonhadores em decomposição.
Desçamos, pois, Nobre, para a caçada!
Voa que não temo a ausência de rédeas
O equilíbrio é mais que perfeito...

Da diferença com o corvo:
Ave, nunca dirás nunca mais!
Pois não foste ensinada a falar com humanos
Nasceste para compreender-me e comigo viver
Ave, nunca dirás nunca mais!
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Ronda circular decrescente
Guiada totalmente pelo resto de luta
É o que almejo e seus globos vidrados
Ao cair sobre as sobras etéreas
Assisto minha montaria alimentar-se dos sonhadores mutilados
Aproveitando apenas o odor e sua perversidade
Porque se deixasse teu dorso, Nobre ave
Assim como eles, me perderia
E não faz parte de meus planos abandonar teu ninho.

Da facilidade da caça:
Presa estática e digerida
Sou parasita com a felicidade de habitar o último da cadeia
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Não saberia precisar as épocas, mas existem as quais a criatura põe ovos. Na primeira ocorrência, por curiosidade (talvez um pouco de precaução), imediatamente rompi a casca rígida do imenso invólucro, encontrando disforme e quase liquefeito, um homúnculo que possuía aparência semelhante à minha, mesmo sob horrendos olhos. Engoli tudo. Quando o Abutre retornou para a próxima caçada, não pareceu importar-se com sua pretensa cria abortada, apenas baixou-se afim de que o montasse... E assim faço com todos os ovos. Creio que a Nobre só precise de algum montador que lhe forneça o equilíbrio mais que perfeito para que chegue à presa.

Do dia da perdição:
Quero que minha atual figura etérea não esmoreça ou suma com o conseguinte relato. Também desejo a quem tenha acesso ao mesmo, sorte, para que não perca o bom senso como eu o fiz. Enfim pude conhecer toda a nobreza do Abutre. Embrenhamo-nos numa das caçadas rotineiras. Pousou sua imensidão no local decaído e deu início ao seu banquete. Observei com glória, como sempre observava, a decomposição, mastigando seu odor. Dentre os corpos carcomidos, (Perdoe-me quem quer que possa perdoar-me!), observei um ser diferente destacando-se da infestação do podre, do horrível. Abraçava uma pluma negra, morto resoluto. Só compreenderia o poder de seu perfume pestilento àqueles que o sentissem! Mas o Abutre parecia ignorá-lo. Seduziu-me este falido corpo morto à perdição, pois saltei do dorso da Ave para melhor observá-lo, senti-lo. Aproximei meu rosto e que horror, quem seja: vi-me abraçado à pena negra; via uma imagem de mim mesmo. Prontamente o Abutre guinchou medonho como nunca o fizera. Não haviam mais corpos. Percebi que meu corpo desfazia-se na podridão que é decompor-se, ao mesmo tempo que mais acima milhares de homens montados em abutres rasgavam os ares com seus olhos sangrentos mirados na minha carne corrompida. A imagem morta abriu os olhos, olhou meu estado e sussurrou com a voz que me pertencia: " Só o montador pode matar a montaria". Deu-me então a pluma para que a abraçasse. O fiz e não sentia mais a minha matéria. A cópia, sim, desfez-se em repugnância. Sentia meu novo corpo transparente e meu perfume, detestavelmente atrativo. Desciam outras aves em direção aos restos de minha imagem. Foi quando o Abutre, quem seja, aquele que me acolhera, abriu as asas gigantescas como a proteger suas crias embora parecesse conformado com a destruição iminente. Rasgaram, abutres e homens, a Ave, em plumas e carne decomposta enquanto seu montador abraçava uma de suas penas observando a própria caveira ser totalmente ingerida pelos mesmos abutres, montarias dos homens. Restam meus sinceros lamentos de fantasma.

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